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Hannah Arendt e O Antissemitismo

"A convicção de que tudo o que acontece no mundo deve ser compreensível pode levar-nos a interpretar a história por meio de lugares-comuns. Compreender não significa negar nos fatos o chocante, eliminar deles o inaudito, ou, ao explicar fenômenos, utilizar-se de analogias e generalidades que diminuam o impacto da realidade e o choque da experiência. Significa, antes de mais nada, examinar e suportar conscientemente o fardo que o nosso século colocou sobre nós – sem negar sua existência, nem vergar humildemente ao seu peso. Compreender significa, em suma, encarar a realidade sem preconceitos e com atenção, e resistir a ela – qualquer que seja."

                                                                           Hannha Arendt, prefácio à primeira edição de Origens do Totalitarismo


É compreensível o impacto que o pensamento de Hannah Arendt causou na sociedade de sua época. Arendt se preocupou em analisar a questão do Antissemitismo (tão presente no seu tempo, sendo que a própria autora esteve em campos de internação em Gurs, na França), no que se pode dizer uma perspectiva lúcida.

A autora usou a perspectiva correta. Indo contra todos os intelectuais de seu tempo, Arendt se recusou a analisar o que chamou de “ação catalisadora do Antissemitismo europeu que se cristalizou na catástrofe” como um fato isolado, desprendido de precedentes. Na parte do livro Origens do Totalitarismo dedicado a análise do Antissemitismo, a autora ressalta uma gama de aspectos da própria cultura judaica, bem como fatos históricos e relações entre o estado e os judeus e os judeus e a sociedade, desde a época medieval que, direta ou indiretamente viriam a contribuir para a solução final adotada pela Alemanha Nazista, bem como todo o seu esforço para levar a solução a cabo, o que envolvia a propaganda em larga escala.

A propaganda, tal como a usada pelos nazistas, tem uma base em fatos que realmente aconteceram. Os aspectos propagandísticos tais como os judeus sendo uma organização internacional que interfere diretamente nas questões de estado e os judeus como um grande grupo familiar disposto a qualquer sacrifício de um gentio para manter o seu status, se devem, respectivamente, ao grande poderio econômico dos Rothschild e a característica familiar adotada entre os judeus, onde o casamento era feito somente entre os seus e entre graus de família permitidos.

A autora também analisa a questão da auto-interpretarão judaica e a distinção entre as massas judias e as suas ambivalências. Primeiramente, desde a expulsão em 70 d.C., as massas judias tenderam a se auto-interpretar como povo escolhido e tomar como premissa de aceitação da sua condição, uma suposta garantia de que todo o seu sofrimento era aceitável como condição e que tudo seria recompensado na vinda do Messias. Faz também parte da auto-interpretação judaica, um evento mais recente na história dos mesmos, onde os judeus se colocaram como grupo a parte dos gentios, não se misturavam e os mesmo faziam questão de se manter a parte e em distanciamento, relutando contra a assimilação. Durante todo o livro, Arendt diferencia as massas judias, sendo uma massa de ricos comerciantes e banqueiros e outra de judeus pobres.

A autora estabelece uma chocante visão dos judeus ricos, sejam banqueiros ou comerciantes. O peso da igualdade e dos privilégios e como estes dois aspectos eram interpretados pelos judeus ricos. Segundo a autora, judeus ricos, isto é, em sua maioria banqueiros e comerciantes, apoiavam a sua igualdade (sendo reconhecida pelo estado por forma de edito ou apenas como forma indireta quando o judeu rico prestava uma série de serviços ao estado, o que alavancava a sua posição) na questão dos privilégios. A igualdade dos judeus ricos e apenas dos ricos era concedida na forma de privilégio e os mesmos entendiam que a igualdade aos seus irmãos pobres era inconcebível, pois estender a igualdade na forma jurídica e civil e não somente na forma de privilégios era, segundo a concepção do judeu rico, uma forma de dissolver a sua posição privilegiada junto a sociedade.

A relação entre crime e vício estabelecida pela autora é importante para compreender como os judeus se tornaram a mira de uma série de mentiras sobre sua tradição e sobre os seus planos junto ao estado e a sociedade. Nos grandes salões da Paris do final do século XIX, os judeus, bem como os homossexuais ou qualquer outra classe considerada pela burguesia como exótica, era bem vista e aceita devido a sua diferença. Se antes ser judeu era considerado um crime passível de agressão pública, nos salões da Paris fin-de-siécle, ser judeu, isto é, diferente, conotava um vício. Vício por si só, era considerado algo de alta sociedade e era encarado como o vício de alguma droga requintada vinda do Oriente. Reside aí o fato da calmaria geral do Antissemitismo após o fim do Caso Dreyfus até o começo da Segunda Grande Guerra.

Porém, como a autora faz questão de ressaltar durante o livro, a incapacidade dos judeus como um todo de perceber as tensões entre Estado e sociedade (incapacidade que advinha da sua auto exclusão do meio social e da sua falta de ambição para assumir algum poder político que não fosse a concessão de empréstimos ao Estado), fez com que os mesmos não percebessem a lógica do vício e do crime. Enquanto um crime se pune com um castigo, um vício se extermina de uma vez só.

Após a ascensão do regime nazista, o sistema de Estados-Nações começou a ruir na Europa. Os atuais regimes se baseavam não no apoio do povo, mas sim da relé, que era a sobra de todas as classes e consequentemente a união de todas as teorias contrárias aos judeus. Apesar de nessa fase não estarem mais intimamente ligados ao Estado- Nação devido a ascensão da burguesia, a aparente estabilidade judia ruiu juntos ao Estado- Nação e não somente os judeus ricos foram arrastados aos campos, mas principalmente as massas pobres.

Durante alguns momentos, o pensamento de Hannah Arendt parece frio, mas não chega  a isso. É uma análise cheia de lógica e que dispensa juízos que inocentam os judeus, que eram o seu próprio povo. Arendt honra a filosofia ao analisar um fato histórico intimamente ligado a sua vida sem se valer de sentimentalismo e com coragem coloca os judeus não como vítimas, mas como co-responsáveis por um evento histórico, que por mais que tenha matado seis milhões de pessoas, não deixa de ser um fato histórico, que envolve várias partes onde cada uma tem a sua responsabilidade e isenção na solução final.

Comecei esse post com a expressão “é compreensível” porque na leitura da primeira parte de Origens do Totalitarismo é isso que autora melhor ensina,
que tudo é passível de compreensão, tudo é compreensível desde que se esteja disposto a se isentar das forças que levem ao senso comum e inibem o ato da reflexão crítica.

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