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O Idiota (romance em quatro partes), de Fiódor Dostoiévski TERCEIRA PARTE

 "Quem festim é esse, que grande e sempiterna festa é essa que não tem fim e que há muito o vem arrastando, sempre, desde a infância, e à qual ele não encontra meio de juntar-se. Toda manhã nasce o mesmo sol claro; toda manhã há arco-íris na cachoeira; toda tarde a montanha nevada, a mais alta de lá, ao longe, nos confins do céu, arde em uma chama purpúrea (...). E tudo tem o seu caminho, só ele não sabe de nada, não compreende nada, nem as pessoas, nem os sons, é estranho a tudo e é um aborto. Oh, ele, é claro, não pôde falar naquele momento com essas palavras e externar a sua pergunta, atormentava-se de forma surda e muda; mas agora lhe parecia que dissera tudo isso e naquela ocasião (...). Ele estava certo disso e, sabe-se lá, seu coração batia movido por esse pensamento..."

                                               Dostoiévski aponta uma lembrança do príncipe Michkím do tempo em que estava se tratando na Suíça. A lembrança foi provocada pela leitura do desconcertante texto de Hipolit.


Conforme a leitura avança, os fatos que acontecem na história também parecem avançar rumo a não apenas uma conclusão, mas a uma série de pequenas conclusões que ao que parece se encaixarão na última parte.

A penúltima parte do romance O Idiota, ou seja, a terceira parte, inicia com uma minuciosa descrição da personagem Lisavieta Prokófievna, mãe das irmãs Alieksandra, Adelaida e Aglaia e também esposa do general Ivan Fiodorovitch. Particularmente gostei muito dessa ênfase dada a personagem, pois como expus na última resenha, sinto certa simpatia por ela. Dostoiévski faz questão de mostrar ao leitor a posição daquela que é uma matrona. Em sua casa todas as preocupações recaem sobre ela e ela responde as preocupações com o seu temperamento ora burguês, ora demasiado humano, o que levou o próprio personagem central a considerá-la uma pequena criança. Em suma, as preocupações quanto ao marido e ao futuro casamento das filhas cabem totalmente a Lisavieta o que contribui para o seu caráter por vezes intempestivo.

Parfen Rogójin também deixa claros os seus sentimentos em relação ao príncipe, mesmo sendo eles ambíguos e de difícil compreensão. Seria uma mistura de ciúme e inveja por parte de Rogójin ao príncipe Michkím. Rogójin inveja a forma com que o príncipe ama Nastácia Filípovna. Enquanto Rogójin ama de uma forma totalmente platônica e demonstra ter tomado a conquista da pretendente como grande empreitada de sua vida, Michkím simplesmente sente compaixão, compaixão digna de um ser feito de amor e que busca a simplicidade nas expressões (o que também parece incomodar Parfen).

É preciso destacar também a fonte de estudo da cultura russa que o livro vem proporcionando. As descrições, que volto a reafirmar, são longas, porém bem estruturadas e graças a boa estruturação não são pesadas, fornecem a quem lê atenciosamente, uma gama de registros sobre a cultura. As várias reuniões que acontecem nessa parte, tanto em casa de Liébediev, na datcha (casa de verão popular na São Petersburgo em que se passa a história) do príncipe ou na dos Iepántchim, mostram qual era o teor das conversas naquela época.

Implicitamente na escrita e com a ajuda das notas de rodapé que acompanham a edição, é possível notar uma série de relações que o autor estabelece tanto com o Evangelho, quanto com poemas de Puchkin ou histórias de crimes ou julgamentos por crimes que aconteceram na França. Essas associações não servem como argumentos para dizer que o autor se inspirou em um apanhado de artigos e textos, mas que ele teve contato com inúmeros artigos jurídicos e obras tanto de autores passados, quanto de fatos do presente envolvidos com a temática social e política.

As profundas reflexões a cerca da natureza e da condição humana também se mostraram presentes no capítulo e destaco as duas que mais chamam a atenção pela profundidade e pela solidez do embasamento:

A brilhante defesa de Liébediev (o qual parece ter sua eloqüência associada a embriaguez e aos tumultos da sociedade, principalmente sobre temas sociais que despertem várias significações) sobre o caso de um homem que, no século XII teria praticado antropofagia com monges e posteriormente com bebês. O fato quando foi introduzido na conversação provocou a indignação de todos os presentes, porém Liébediev se valeu de uma série de argumentos, entre os quais pode se destacar a necessidade e a bondade inerente da alma, considerando que o canibal teria assumido o crime posteriormente, mediante os sentimentos provocados em sua alma devido ao crime praticado. Liébediev se vale também das condições da época.

A narrativa do tísico Hipolit, que considera as suas duas últimas semanas de vida e decide escrever um artigo para ler em sociedade. Durante uma das reuniões, se vale da sua situação e pede licença para ler o escrito. O escrito se mostra como um manifesto a futilidade de certos seres sociais, tanto ricos que se dedicam a determinadas atividades, quanto a pobres que, segundo o personagem, são pobres devido ao próprio querer. Com a narrativa do escrito, Hipolit revela o seu descontentamento e raiva de uma sociedade que em sua impressão é além de desorganizada, corrupta.

Concluindo, é notável nesta terceira parte como a narrativa se mostra circular. Circular porque quem lê com atenção nota como o personagem do príncipe começa a se colocar no centro dos acontecimentos. Todos os fatos narrados possuem ao menos uma ligação com o príncipe e antes de chegarem a sua conclusão envolvendo as partes, passam pelo personagem do príncipe.  Ao que tudo indica, como eu já mostrei no começo da resenha, na órbita de tudo que se refere ao príncipe, começa a se dar as pequenas conclusões, que conforme o ritmo da narrativa chegará a conclusão final da obra.


  

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