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O Idiota (romance em quatro partes), de Fiódor Dostoiévski. PRIMEIRA PARTE

"Eu tenho minha concepção de real (em arte), e aquilo que a maioria chama quase de fantástico e excepcional para mim constitui, às vezes, a própria essência do real. (...) Porventura meu fantástico Idiota não é realidade, e ainda mais rotineira!? Ora, é precisamente neste momento que deve haver semelhantes caracteres em nossos segmentos sociais desvinculados da sua terra, segmentos esses que, na realidade, se tornam fantásticos."
                                                                 
                                                                      Resposta de Dostoiévski a uma crítica que qualificava o seu personagem como irreal.


Desconstruindo a imagem de volumoso, rebuscado e repleto de convites a altas reflexões, a primeira parte do romance do russo Fiódor Dostoiévski se mostra uma narrativa não densa, mas contínua e que é capaz de envolver o leitor em todos os sentidos.

Com um cenário muito bem construído, a primeira parte do romance se dá na enevoada São Petersburgo, onde Dostoiévski descreve desde os seus transeuntes e os coches, até os bêbados miseráveis e desesperados como o pai de Gánia.

Dostoiévski apresenta na obra a imagem do perfeito idiota, mistura de Cristo e Dom Quixote, figuras pelas quais o autor guardou grande admiração. Míckhim é ao mesmo tempo homem, porém dotado de uma infantilidade doce,  não confusa nem desconecta da sua realidade. A personagem apresenta perfeito conhecimento da sociedade em que vai se relacionar e o mesmo faz uso de meios encantadores de persuasão, que são, dada a obra, inerentes a personalidade da personagem.

Nastácia Filípovna, personagem que, na primeira parte do livro, chega ao ápice e ao seu objetivo de cinco anos dentro de uma sociedade suja e corrupta composta por chefas de família e mulheres anfitriãs bem vestidas, protagoniza uma das cenas mais famosas da literatura ocidental, quando contradiz todo o seu caráter e quebra todo o conceito construído em cima de si quando joga um pacote de dinheiro no fogo em um lance de total loucura que é a mescla de excitação e liberdade para o seu real destino.

A primeira parte do romance se resume, porém não se limita, a chegada de Mickhím à Rússia, as suas apresentações e a apresentação da personagem Nastácia Filípovna, bem como acontecimentos e relações entre personagens que dão a entender que determinaram os acontecimentos da segunda parte.

Ainda sobre o personagem central, o idiota ou simplesmente o príncipe Mickhím, parece manter uma contradição entre a sua aparência e a sua personagem. Nas apresentações, todos receiam o que poderia querer um homem com aparência estranha, recém chegado de um tratamento para epilepsia na Suíça. Logo, Míckhim sabe persuadir da forma mais inocente, usando a sua simplicidade e carisma que encanta a todos.

Duas cenas em especial, me chamaram a atenção para a riqueza da sua narrativa que foi capaz de provocar extremas emoções: a cena na casa de Gánia, com Nastácia Filipovna e a reunião do aniversário dela, na casa da mesma.

A primeira, pela sua agitação, que começa com um lance descritivo rápido onde o autor descreve o ambiente e os personagens, posteriormente partindo para ricos diálogos. Nessa primeira cena, as emoções e o ambiente de tensão na casa de Gánia podem ser sentidos.

A segunda cena, marcada pela loucura de Nastácia Filípovna, é capaz de fazer o leitor sentir o ambiente de tensão e receio que paira sobre todos os convidados em relação aos atos da personagem.
A maestria descritiva das duas cenas, a descrição rápida e ao mesmo tempo minuciosa, desperta no leitor o turbilhão de sensações, com destaque para a ansiedade e o receio.

Ainda na cena da festa de aniversário de Nastácia Filípovna, outra crítica fica clara, o quanto a sociedade presente foi capaz de mudar os seus conceitos em relação a Míckhim quando souberam que o mesmo receberia uma herança de uma tia.

Dostoiévski é capaz de nos prender a sua obra e transportar o leitor para o seu mundo e ao que parece com os seus sentimentos e um pouco das suas angústias em relação a uma sociedade e o seu carisma por alguns personagens históricos.


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