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Resenha: O crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós.

“Aí tem o abade uma educação dominada inteiramente pelo absurdo: resistência as mais justas solicitações da natureza, e resistência aos mais elevados movimentos da razão. Preparar um padre é criar um monstro que há-de passar a sua desgraçada existência numa batalha desesperada contra os dois fatos irreversíveis do universo – a força da Matéria e a força da Razão”
                                                                                                       Personagem Dr Gouveia sobre o os padres.


Nada mais desafiador do que proibir. E o que se mostra mais desafiador ainda em O Crime do Padre Amaro, é ter um meio cheio de proibições e falsas idealizações, que acabam se tornando o terreno de muitos desejos.

Se tivesse que escolher um livro realista ou, nesse caso, naturalista, que melhor tivesse descrito a situação de determinismo, escolheria esse, de Eça de Queirós.

Os dois personagens são fruto dos meios em que foram criados, isso fica muito claro a partir do começo do livro e qualquer pessoa que tenha alguma experiência literária com o Naturalismo, já percebe desde o primeiro capítulo o que vai determinar o que.

Amaro fora criado como um menino fraco. Sem vontades, suas vontades dependiam dos outros. Como menino fraco, era maleável: vestiam-no de mulher e criavam nele um grande temor do inferno e um grande sermão de atitudes para alcançar o céu. Rodeado de mulheres e santas, Amaro encontra em uma imagem de uma santa, o que qualquer outro garoto encontraria em uma bela senhora na rua.

O mesmo pode-se dizer de Amélia. Criada em um antro de deuses e imagens, Amélia habitua-se a idealizar neles a paixão que toda menina idealizaria, no mínimo por uma boneca e no máximo pelo seu amigo menino. Sua mãe já era amiguíssima de um padre e embora muitos neguem, ela passa para a sua filha o sentimento de dever para com os sacerdotes.

O autor chocou muito a sociedade, ao atribuir aos personagens do livro sentimentos impensáveis para eles. Desejos que eram proibidos e que por serem proibidos eram negados e repreendidos de toda a forma.

Analisando o clero, o autor não fez nada mais do que fazer o que a literatura manda: fale a verdade, fale a sua verdade, não importa o caminho, nem mesmo que seja pela fantasia. Nesse caso, era pura realidade: Eça retratou muito bem os bons valores do clero, que correspondem aos noticiários que acompanhamos hoje. O foco de análise da instituição se dá em um momento histórico que a mesma se vê ameaçada, ou seja, crise dos seus bons protetores monarcas através do republicanismo e o avanço das doutrinas ateístas que acompanhavam os comunistas.

Em minha opinião, a crítica mais ferrenha dirigida ao clero é aquela que permaneceu durante muito tempo no contexto da Igreja: a burrice perpetuada por uma classe de religiosos que se excluem da burrice que propagam, ou seja, serei esperto, mas somente eu, as pessoas que se danem. Não é difícil encontrar trechos onde o próprio clero demonstra asco pelos medos morais que a religião impõem, porém, se mostram corruptos ao assegurar a necessidade desse idiotismo que agrilhoa as pessoas à imaturidade.

Se abrirmos mais a questão do clero implícita no livro, é preciso ressaltar que o autor dividiu de forma rígida e correta a classe religioso entre os que de verdade buscam a perpetuação da religião e aqueles que fazem uso errado da mesma. Exemplo claro, é quando o abade Ferrão tenta mostrar para uma beata fervorosa que Deus não é um inquisidor, mas sim um pai fiel para todos os momentos e pronto a perdoar os pecados. Como boa beata seguidora dos medos morais pregados pelo clero de Leiria, ela difama o bom abade pela sua posição profana em relação à religião.

Concluindo, recomendo a leitura do livro para aqueles que ainda se sentem presos não somente às amarras da religião, mas também do dogmatismo moral, uma vez que essa posição será magnificamente desconstruída pelo autor com cenas que são idiotas para o mundo contemporâneo, bem como para aqueles que nas suas leituras não conseguem encontrar uma rica descrição da contradição humana. Contradição que se dá entre o moral e o instinto, entre a vontade e o dever.


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