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O Idiota (romance em quatro partes), de Fiódor Dostoiévski SEGUNDA PARTE


"E porventura o rosto dela só inspira paixão? Além do mais, aquele rosto pode inspirar paixão até agora? Ele só infunde sofrimento, ele abrange toda a alma, ele... e uma lembrança cruciante e torturante correu de repente pelo coração do príncipe.


Sim, é torturante. Ele se lembrou de que ainda há pouco ficara angustiado quando pela primeira vez passou a observar nela sinais de loucura. Naquele instante ele caiu quase em desespero. E como pôde deixá-la no momento em que ela fugia dele para Rogójin? Era a ele que cabia correr atrás dela e não ficar esperanto notícias. Entretanto... será que até hoje Rogójin não notou loucura nela? Hum... Rogójin vê em tudo outras causas, causas ardentes!"


                                                                                 Reflexão feita pelo autor sobre os sentimentos do príncipe em relação a fuga de Nastácia Filípovna com Parfen Rogójin.


A segunda parte do romance de DDostoiévskicomeça com a viajem do príncipe Michkím a Moscou para receber uma herança por parte de uma tia distante (herança que causou alvoroço na primeira parte do romance, na cena em que Nastácia Filípovna enlouquece em seu aniversário) e termina com uma série de intrigas como culminância de outras confusões recém esclarecidas.

Destaco como a segunda parte começa e como ela termina porque no decorrer da leitura, é notável o mecanismo que o autor usa (usou até a presente parte) para entrelaçar as partes do romance, talvez não entrelaçar o enredo, mas sim despertar a vontade e a curiosidade do leitor em relação ao que vai acontecer no próximo capítulo.

Explicando melhor: toda a confusão que se dá no final da primeira parte do romance é, por entre outras coisas, por causa da súbita notícia de que o príncipe recebera uma enorme quantia em dinheiro (conotando a capacidade da sociedade de mudar os conceitos e valores sobre um indivíduo mediante a sua condição financeira). O autor começa então a segunda parte, explicando a viajem do príncipe a Moscou, bem como o destino até então determinado de alguns personagens, destinos esses que são a chave para o desenvolvimento de outros acontecimentos durante o capítulo. No final da segunda parte, acontece uma reunião parecida com a que ocorreu na casa de Nastácia Filípovna, porém, na casa de um amigo do príncipe, Liebediev. Nessa reunião, de ânimos acalorados devido a uma recente crise do príncipe, acontece o desfecho de uma história que contestaria toda a herança recebida pelo príncipe. O gancho que lança o leitor para o próximo capítulo se dá, quando na saída da reunião na casa de Liébediev, Nastácia Filípovna aparece de surpresa cobrando um dos convidados.

Saindo da questão do enredo, o autor faz uma um incrível relato das sensações causadas pela epilepsia. É impossível exprimir a profundidade do relato que se dá na mente do príncipe sobre como o seu corpo reage antes e depois do ataque de epilepsia. Entende-se a sensação de autoconhecimento produzido pelo ataque e o segundo da auto-satisfação, que é, em palavras do autor, como um raio.

Não posso esquecer-me de ressaltar as características do grupo de Burdovski, onde o autor cria uma crítica ao progresso liberal europeu e começa a abrir caminho para o Eslavismo, que já é alertado pela nota no começo da edição. DDostoiévskicria nesse grupo, um amontoado de pessoas efusivas e que crêem nos direitos permanentes e irrefutáveis da humanidade e se valem deles como embasamento para atitudes descontroladas e desmedidas. Essa ideia contra o que seria um esquerdismo ou um avanço do ocidentalismo, Dostoiévski desenvolve melhor em “Os Demônios”.

De todos os personagens, acredito que o que mais se ressalta é, por excelência do romance, o príncipe Míchkin, porém, o que mais gosto quando está no enredo, é Lisavieta Prokófievna, mulher de Ivan Fiodoróvitch. Há algo de liberal, porém tradicional na personagem, que a torna ao mesmo tempo verdadeira, porém, um pouco mal educada. Suas bruscas mudanças de tom ao falar e ao tomar certas atitudes, mostram uma mulher determinada. Todo o conjunto dessa personagem a torna cômica, mas ao mesmo tempo digna de uma atenção notória pelo seu papel ocupado na trama, bem como as suas intervenções em certos diálogos.

Concluindo essa segunda parte, o autor continuou com a escrita detalhista, mas nem por isso cansativa. O detalhismo, ou antes, a riqueza das descrições, tanto dos cenários quanto dos personagens somente ampliam a qualidade do romance. O diferencial nessa segunda parte é que DDostoiévskinos serve desse detalhismo um pouco mais adentro das emoções e dos fluídos emocionais dos personagens. A boa compreensão da psicologia, bem como dos “fenômenos” da alma, fazem com que o autor se sirva dos transtornos dos seus personagens para além de enriquecer a obra, aumentar a qualidade dos diálogos e tornar também, estes “fenômenos” da alma determinantes no enredo, assim como é, na realidade.


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