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O Idiota (romance em quatro partes), de Fiódor Dostoiévski PARTE QUATRO (CONCLUSÃO)

"No seu desejo ardente de distinguir-se, às vezes estava pronto para o salto mais irracional; no entanto, mal conseguia se aproximar do salto irracional, nosso herói sempre se revelava inteligente demais para se atrever a dá-lo. Isso o deixava aniquilado. Tivesse oportunidade, é possível que se decidisse até por uma coisa vil, contanto que conseguisse  algo daquilo com que sonhava; porém, como se fosse de propósito, tão logo chegava ao limite sempre se revelava honesto demais para o ato extremamente vil."
                                         
                                                              Dostoiévski sobre os homens que buscam a originalidade de forma inteligente. Exemplificou  a busca em duas partes, no velho Ívolguin e no seu filho, Gravrila Ardaliónovitch.

Como ocorreu na terceira parte, a quarta e última parte do romance O Idiota, de Fiódor Dostoiévski começa com uma breve introdução. O autor dessa vez concentra a sua análise na ênfase da busca pela originalidade e também pela oridinariedade. Expressou de forma clara o esforço das pessoas da época na busca da originalidade, dando a entender que existe uma divisão de pessoas comuns: as comuns limitadas e as comuns inteligentes, exemplificado pelo próprio autor com os irmãos Ívolguin. Dostoiévski afirma que entre os dois tipos de pessoas que buscam a originalidade, o segundo tipo tende a sofrer mais devido a sua ânsia na busca do destaque e que o primeiro tipo, os limitados, tende talvez não a conseguir o objetivo da originalidade, mas chegar mais próximo dele.

Havia mencionado na última resenha que a narrativa era circular. Estava certo: supunha que os fatos que estavam ocorrendo na terceira parte concluiriam intrinsecamente no final. A certeza foi reforçada na quarta parte devido ao que eu me convenciono chamar de “afloramento dos personagens”: momento em que a essência particular de cada envolvido tende a se intensificar para contribuir no desfecho final, sendo assim, a bondade e a compaixão do príncipe são exaltadas e em contraponto, a particularidade e a ambição de Aglaia se fazem mais constantes, bem como as particularidades de cada personagem.

Chamou-me a atenção o capitulo que o autor reservou ao general Ívolguin. General Ívolguin era um homem próspero que defendeu a pátria (algo exaltado em todo o livro) em tempos de guerra. É interessante notar como Dostoiévski faz questão de contar, mesmo que de forma rápida, mas eficiente, a degradação do personagem através da bebida: o que antes era credibilidade frente à sociedade havia se tornado incredibilidade a um velho beberrão. Mesmo senso inverossímil, a descrição possivelmente falsa do General sobre a ocupação de Moscou por Napoleão é no mínimo curiosa.

Um forte contraponto estava presente nas entrelinhas do livro. O questionamento de Aglaia a Nastácia Filípovna:

“Por que não se casa agora com um homem decente que tanto a ama e lhe faz a honra de propor-lhe sua mão? Esta claro demais por quê: casando com Rogójin, que ofensa então restará? Vai receber honras até demais! (...) a senhora leu um número exagerado de poemas e ‘é instruída demais para a sua... condição’; que a senhora é uma mulher livresca e boa-vida; acrescente-se a sua vaidade e eis todos os motivos...”

Pela primeira vez o autor mostra argumentos por parte de outro personagem a todos os atos da personagem Nastácia Filípovna  e demonstra isso de forma forte, pois realmente era preciso uma oposição a todos os acontecimentos derradeiros das ações de personagem.

Essa objeção feita por Aglaia a Nastácia Filípovna acontece em um momento chave que determina todo o final do livro. O acontecimento se dá em uma casa, em um diálogo incisivo travado entre as duas personagens, com a presença do príncipe e de Rogójin. Novamente se faz presente a capacidade do autor de transportar para o leitor toda a atmosfera da cena e sem exageros, é possível afirmar que as sensações dos personagens são sentidas pelo leitor.

O final do livro foi contra todas as minhas expectativas. Esperava que Dostoiévski colocasse o personagem central em uma posição estável, ocorreu exatamente o contrário. Imaginei que o final dado ao príncipe corresponderia a todas as suas atitudes, mas aí está a questão. Nesse ponto concordo com o autor: Michkím era bom demais, inocente demais e foi corrompido demais pelo sentimento de compaixão (Nastácia Filípovna) e amor (Aglaia).

O ser humano ideal em termos de caráter era russificado para Dostoiévski. Talvez devido ao seu Eslavismo e patriotismo, a mescla de Cristo e Dom Quixote precisava ser russo e mostrar ao ocidente (conforme o autor explicitou em seus vários alter-egos) aonde o mundo era conservado segundo os ideais morais.

Talvez devido a isso, o autor com a sua maestria, conseguiu dar ao príncipe um final que atende as duas expectativas: a do príncipe, pois um ser dotado não merece os comuns e a sociedade, pois um ser tão bondoso não deve ser corrompido.

A bondade é colocada no livro pelo autor como sinônimo de idiotismo. Nenhum dos inteligentes personagens, hábeis para as aspirações sociais era idiota, consequentemente não eram bondosos, nem tinham um mínimo do sentimento exaltado constantemente pelo autor: a compaixão.

A obra tem um fundo moral ambíguo, pois podem passar várias mensagens, ambas cabíveis, ambas aceitáveis: “Tome cuidado, não hajas como um idiota ou acabarás louco!” ou ‘Vides como os nobres e os bons, ricos em compaixão, tem seu derradeiro destino longe das impurezas da sociedade!”

Mas algo não fecha com o Eslavismo de Dostoiévski, se é que ele realmente se faz presente ao lado do tão discutido reacionarismo do autor: por que jogar o personagem ideal para o Ocidente? Por que não mantê-lo na Rússia? Talvez aí esteja a grande crítica: “Cuidado Rússia você não merece os idiotas bondosos!”

Ler O Idiota é ler um romance produtivo, cheio de indagações, críticas e história, história no sentido de fatos que realmente aconteceram e que de alguma forma podem ser interpretados no contexto da época. Mas acima de tudo, o romance serve para abrir uma discussão sobre quais são os termos do conceito "idiota" e o quanto ele é variante, como é visto e encarado. Abordar o idiotismo e associá-lo a bondade é mais que uma crítica, é acima de tudo escrever sobre uma temática que está presente na nossa atualidade,

O personagem de Dostoiévski continua russo, moralizado, dignizado e idiota. Mas encantador, inspirador. Conforme a índole do leitor, ele poderá se inspirar e arrancar a primeira moral que expus anteriormente ou fugir do personagem e tomar a segunda moral.


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