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Resenha: Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva.

Sempre me recomendavam ler Feliz Ano Velho, desde a professora de português com o argumento do livro falar muito sobre a ditadura no Brasil, até amigos alegando as cenas engraçadas e momentos divertidos e claro, a lição implícita na história. Por minha parte, sempre tentava retirar na biblioteca da escola. Na semana passada eu consegui e posso dizer, eles estavam certos.

A história é basicamente a história do autor, Marcelo Rubens Paiva. O livro vai começar narrando o seu acidente, onde ele estava com os seus amigos e numa brincadeira boba, saltou em um lago de cerca de meio metro de profundidade, quebrando a coluna, é daí que vão partir os fatos.

Ele narra toda a sua trajetória, desde a chegada no hospital, a difícil recuperação e o mais legal, ele conta verdadeiramente (é o que parece, pelo menos) o que ele sente e o que ele pensa.

Toda a descrição da recuperação, os quartos do hospital, a cama, a sonda, o soro, enfim, tudo é feita entrelaçada com fatos do seu passado. Desde as relações na escola (colégio de burgueses que de certo modo o oprimiam) com os amigos e as meninas, até as aventuranças da juventude.

Que juventude era essa? Sabe o que é ler e comparar o que o cara fazia na tua idade e o que você faz e se achar um tremendo idiota em não curtir as coisas? Tipo isso. O cara viveu altas aventuras e o melhor, o modo que ele narra, de uma forma leve, torna tudo tão natural. O mais interessante é que os caras saíam, bebiam, transavam e nem por isso eram alienados. Ouviam boa música e tinham senso político (uma vez que estavam na ditadura). Simplesmente sensacional.  Eles sabiam conciliar as duas coisas: diversão e cultura. Na boa, que juventude desencanada.

No livro ele dá o real sentido de “memórias”, o cara conta tudo, sem nenhuma vergonha, desde transas até drogas, sem se preocupar com o que os outros vão dizer ou julgar e o que vão pensar as pessoas envolvidas, admiro as pessoas que tem essa coragem.

Como eu já escrevi, a escrita que o autor usa é bem leve, nada pesado. É uma narração que não se vale de termos difíceis e em minha opinião, é isso que torna a obra tão sensacional: a capacidade de narrar um fato triste ou feliz, de uma forma leve, sem utilizar termos complicados que consequentemente complicam e distorcem o entendimento. Ele também usa bastante as gírias da época, o que pode ser entendido como um recurso para aproximar o leitor do fato que o autor está tentando descrever e funcionou.

Vai ter momentos que você vai sofrer junto com o narrador-personagem. No começo você parece um estranho junto com a história, depois você começa a se familiarizar, a torcer pela recuperação do Marcelo e passa a interagir de certa forma com os seus inúmeros amigos. Sim, são muitos amigos.

Em dado momento, ele vai contar o episódio que os militares invadem a casa dele, sequestram o seu pai que era um advogado influente, que acaba sendo prezo pela ditadura, junto com a esposa, mãe do Marcelo. Ele vai contar que fizeram uma espécie de guarnição durante um dia inteiro na casa deles. O autor vai também se posicionar bastante em relação aos novos partidos de esquerda que estavam começando a surgir, tendo por base os pequenos grupos universitários também de orientação esquerdista, principalmente na USP e na Unicamp.

A parte, ou melhor, as partes que eu mais gosto, são as que ele se torna mais subjetivista. Que ele mostra o seu jeito de olhar a coisas, sempre com um tom de ironia. Como ele se relacionava com as ex-namoradas, como  iniciava uma paquera antes e agora de cadeira de rodas. Como ele encarava as novas situações e as novas necessidades. O cara era bem original, tinha (e acredito que ainda tenha) um jeito bem particular de interpretar os fatos.

Foi um livro que eu gostei muito, tem uma lição de moral implícita que vai além dos cuidados com o corpo, mas também cuidados com as idéias, é uma rica fonte história sobre a ditadura e como começou os movimentos de esquerda contrários a ela. Não é um livro difícil e ele não decepcionou.

Uma obra simples, mas que não deixa a simplicidade atrapalhar a qualidade, tanto
a qualidade da escrita, quanto a qualidade de memória histórica que retrata uma sociedade de uma época, seus costumes, moral e tradição.



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